FESTIVAL INTERNACIONAL DE JARDINS 2017

Vila de Ponte de Lima

Os Descobrimentos e a Expansão Portuguesa – Duas Abordagens


"Só um sentido de invenção e uma necessidade intensa de criar levam o homem a revoltar-se, a descobrir e a descobrir-se com lucidez".
Pablo Picasso

Em todas as publicações que apresentaram o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima existiu a preocupação primeira, sempre que possível, de ligar as temáticas de cada uma das edições a Ponte de Lima, a alguns aspectos específicos que caracterizassem o concelho diferentemente no contexto dos assuntos abordados em cada um dos certames, mas noutros casos permitiu-se uma liberdade de abordagem de exposição dos conteúdos numa vertente que exigiu várias leituras, investigação pertinente e recurso a bibliografia especializada, como acontecerá com o presente texto.

Conciliar os temas a concurso com um texto de apresentação directamente ligado ao espaço territorial que nos acolhe e em que vivemos, Ponte de Lima, pode parecer tarefa fácil mas nem sempre é de simples concretização, implicando o recurso a diversa informação, independentemente dos suportes em que se encontra.

O tema “Jardim das Descobertas” leva-nos, quase irreflectidamente, ao fabuloso tema dos Descobrimentos Portugueses, que nos identifica sobremaneira, como Povo e como Nação, no contexto do desenvolvimento mundial, a todos os níveis, principalmente entre os séculos XV e XVI.

Falar de Descobertas obriga-nos a enveredar por questões ligadas aos Descobrimentos e à Expansão Portuguesa.

É, sem dúvida, um tema desafiante e que nos entusiasma, pois apela à imaginação numa tentativa de reviver um tempo de façanhas heroicas, a essas descobertas de mundos novos, ao sempre querer mais que os Portugueses souberam marcar ao longo da sua rica História.

Importa sublinhar que não foi fácil todo o movimento da Expansão Portuguesa e a mesma está praticamente nos antípodas das versões romanceadas que apresentam tudo sem dificuldades, escamoteando os muitos e diários conflitos, as opções politicas, diplomáticas e geoestratégicas, as guerras, as mortes, as falsidades, as traições, a corrupção, estas últimas sobretudo quando chegamos ao Índico e muitas outras situações más ou, melhor dizendo, menos boas, que marcaram Portugal e todos os territórios envolvidos durante os Descobrimentos.

Por formação, temos a firme convicção que uma publicação deste tipo não permite tratar de assunto tão complexo em meia dúzia de páginas, mas se abordarmos apenas algumas curiosidades, de maneira criteriosa, sucinta e séria, podemos contribuir para um conhecimento mais generalizado daquilo que todos designamos por Descobrimentos Portugueses, ressalvando que parte dos textos a seguir expostos serviram para sustentar trabalhos académicos que em tempos apresentamos.

As duas abordagens a que nos propusemos são as seguintes.

Numa primeira fase, uma curta reflexão sobre as causas de fixação dos portugueses em Marrocos; a periodização e posterior caracterização das várias etapas de expansão e fixação portuguesa no espaço extraeuropeu; uma análise, em confronto, das modalidades de fixação dos portugueses no espaço africano e nos espaços oceânicos do Índico ao Pacífico; a avaliação das diferentes estratégias usadas pelos monarcas portugueses no decurso da Expansão Portuguesa, essa autêntica aventura planetária, “…maré humana de portugueses cujo fluxo e refluxo varreram os oceanos e os continentes da terra…” (Russell-Wood, 1998, p. 340).

Na fase posterior, a segunda abordagem, pretendemos efectivar um resumo que abarque a periodização e caracterização das etapas de domínio do Atlântico; estabelecer paralelismos dessas etapas com o diferente tipo de embarcações que foram sendo utilizadas pelos portugueses; explicitar como essas etapas estão directamente relacionadas com o cartografar dos espaços; avaliar de que modo o cartografar dos espaços oceânicos (Atlântico e Índico) e as embarcações aí utilizadas pelos portugueses se inserem, por sua vez, também nas diferentes estratégias usadas pelos nossos monarcas ao longo do período temporal que aqui analisamos.

Feitas as pazes com Castela em 1411, D. João I prepara-se para armar os seus filhos cavaleiros, projectando a realização de festejos condignos em Lisboa, situação que não agradou aos Infantes, pois pretendiam “alcançar essa categoria em acção guerreira” (Oliveira, 1999, p. 89). Surge então, com contento dos Infantes, Ceuta como horizonte, cidade que, segundo Zurara, era «mui azada para se tomar». A prolongação do Reino para Marrocos desde há tempos passava pelas mentes de muitos, nomeadamente dos monarcas, situação que se verifica pelas viagens de exploração que se vinham fazendo, de há longo prazo, pelo Atlântico em direcção a Sul. Estava agora chegada a oportunidade para levar a cabo o feito, reunindo razões que, pese embora divergentes e defendidas por diferentes estratos sociais, no seu conjunto, agradavam à maioria dos intervenientes: a continuação da Cruzada contra os infiéis – «serviço a Deus»; armar cavaleiros os Infantes por serviços valorosos; ocupar a nobreza guerreira que, sempre na senda da honra e proveito, com o Reino em paz, se encontrava ávida de novas acções bélicas que lhe trouxessem mais valias e proventos – o saque e as terras conquistadas; estabelecimento de uma posição estratégica num “porto onde se cruzavam rotas comerciais”, o Estreito de Gibraltar, que era “a porta que estabelecia comunicação entre dois importantes mundos económicos – o marroquino mediterrânico e o marroquino atlântico” (Oliveira, 1999, p. 91); bem como, agradar à burguesia, grupo social muito ligado a D. João I pelos apoios concedidos na crise de 1383-1385, que via em Marrocos uma oportunidade de expandir a actividade comercial, estabelecendo novos pontos de contacto e o desenvolvimento de relações mercantis. A conquista de Ceuta, em 1415, primeiro passo da Expansão Portuguesa, aliou fé ao lucro, vendo aqui alguns autores o papel de primordial importância do Infante D. Henrique, bem como questões militares, económicas e expansionistas que respondiam à procura portuguesa de então, desejosa do “prolongamento do território nacional” (Oliveira, 1999, p. 92).

No que concerne às etapas principais, a primeira baliza-se no período compreendido entre 1415-1439/40, nos reinados de D. João I e de D. Duarte e na regência de D. Leonor. Assiste-se à integração das ilhas da Madeira (1419), dos Açores (1427) e à dobragem do Cabo Bojador (1434) – “abertura das passagens para Sul do continente” (Oliveira, 1999, p. 156) – num período assinalado pela dualidade de interesses – por um lado a nobreza, bélica e sedenta de honrarias, mantém uma guerra directa ao infiel e, por outro lado, as conveniências da burguesia mercantil obrigam a planos directamente ligados às actividades comerciais, não descurando a exploração e a busca geográficas. Destaca-se aqui a actuação do Infante D. Henrique que funcionou como ponte entre os dois interesses, ora na conquista de Ceuta ou na malograda tentativa de conquista de Tânger (1437), em prol da nobreza, ora incentivando acções de colonização nas áreas descobertas, numa atitude de apoio à burguesia e à exploração desse novo mundo – numa sub-fase que se evidenciou notoriamente até 1434, em que “o oiro, o oirinho reluzente que juntamente com as especiarias, os escravos e os corantes para a indústria têxtil se contam entre os principais motivos de atracção” (Coelho, 1985, p. 63). Dê-se a devida ênfase para os indispensáveis progressos técnicos desta etapa, que vê surgir a caravela, pelos “aperfeiçoamentos técnicos em embarcações tradicionais” (Oliveira, 1999, p. 165).

Durante a regência do Infante D. Pedro, na menoridade de D. Afonso, entre 1440 e 1449, dá-se nova etapa. Caracteriza-se principalmente pela preocupação em efectuar contactos “à boa paz” e por acções de índole comercial, depois de explorada a região a Sul do Cabo Branco e toda costa do Golfo de Arguim, por Nuno Tristão, em 1443. Será então possível, pelo Rio S. João, penetrar no continente e realizar o primeiro contacto – “a partir do Mar – com o trajecto das grandes rotas caravaneiras” (Oliveira, 1999, p. 167). Aquela zona, a de Arguim, vê nascer a feitoria que irá marcar toda esta fase da expansão, tornando-se o “protótipo da cadeia de feitorias fortificadas que os Portugueses edificaram, mais tarde, ao longo de toda a costa africana e asiática…” (Boxer, 1992, p. 42). O Sul é o objectivo fundamental e as expedições sucedem-se, nomeadamente as particulares com a permissão do Infante D. Henrique. Dobra-se o Cabo Verde em 1444 e, no ano seguinte, o Cabo dos Mastros, seguindo-se a exploração do Rio Gâmbia e dos grandes rios da Guiné. A actividade comercial prospera de forma notória, tendo em conta que a “grande massa de produtos exóticos trazidos […] destinava-se a ser colocada nos mercados europeus e não ao consumo nacional” (Castro, 1989, p. 325).

Terminada esta etapa, também de inovações importantíssimas como a «volta pelo largo» e a desnecessária escala nas Canárias, optando-se pela situação estratégica dos Açores e da Madeira, passamos à determinada pelos anos 1449/50-1482, marcada, depois da morte do Infante D. Pedro em Alfarrobeira, pelo neo-senhorialismo de D. Afonso V. De 1449 a 1469 as viagens de exploração abrandam e com elas os interesses mercantis e burgueses vêem-se relegados para um plano inferior, como, por exemplo, a suspensão da exploração da prometedora zona da Senegâmbia. D. Henrique, que virá a falecer em 1460, apoia o seu sobrinho, o Rei D. Afonso V, que inicia a guerra de Marrocos e que ficará para a história cognominado “O Africano”, tendo, depois dessa expansão guerreira e militar no Norte de África, tomado o título de rei dos Algarves d’Aquém e d’Além Mar. No entanto, continuam algumas explorações, principalmente pela acção particular de Fernão Gomes, que alcançam o Cabo de Santa Catarina em 1474. Criam-se importantes zonas de trato, cujos nomes, são por si bem explícitos da importância comercial que detinham: Costa da Malagueta, Costa dos Escravos, Costa do Marfim, Costa do Ouro. É, porém, a denominada Aldeia das Duas Partes que irá ver nascer “a mais importante feitoria levantada pelos Portugueses” (Oliveira, 1999, p. 165) – a Feitoria e Castelo de S. Jorge da Mina, mandada erigir por D. João II e que marca o final da presente etapa.

Entre 1482-1502/3 novo ciclo se inicia com D. João II – “…caravelas por mar, exploravam a costa africana, traziam à corte as riquezas encontradas e, com elas, príncipes e súbditos que faziam do monarca português o Senhor dos senhores…” (Mendonça, 1995, p. 284). Quer chegar à costa Oriental Africana, na certeza que o seu alcance permitia a chegada à Índia por mar. Diogo Cão e Bartolomeu Dias são encarregues das missões e, este último, em 1487-88 dobra o Cabo das Tormentas, da Boa Esperança para D. João II, que não assistiu à chegada à Índia, por a morte o colher em 1495. D. Manuel I, seu sucessor, será o monarca de tal feito, através de Vasco da Gama, em 1497-98.

Alcançava-se, assim, o Índico e importa, a partir daqui, evidenciar alguns aspectos da expansão neste oceano, bem como da posterior intervenção no Pacífico, aliados às políticas dos distintos monarcas.

Como se viu, a etapa africana, passou pelas fases guerreiras e comerciais (permita-se-nos chamar-lhes assim para as individualizar), protagonizadas, as primeiras, por D. João I, em parte, D. Duarte e D. Afonso V. Quanto às segundas, também D. João I as incentivou, voltando a elas o Infante D. Pedro, na sua regência entre o reinado de D. Duarte e de D. Afonso V, bem como D. João II, exemplo marcante desse tipo de estratégia da «boa paz». D. Manuel vai aplicar de novo a força das armas, o que faz também no Índico, só terminando os seus intentos com o desastre da expedição contra Mamora. Segue-se D. João III, numa altura em que se corria o “sério risco de perdermos o reino de cá, sem ganhar o de lá” (Moreno, 1988, p. 116), e, depois de muitas viravoltas, auscultações, conselhos, a presença portuguesa vai tornar-se diminuta – no Norte, Ceuta e Tânger e no Sul, Mazagão. Virá depois D. Sebastião retomar o sonho africano que, com ele, morrerá em Alcácer Quibir, em 1578.

Como se viu, a política das armas transferiu-se para o Índico no reinado de D. Manuel I, através do 1.º Vice-Rei da Índia, D. Francisco de Almeida, na etapa de 1500 a 1505/09, quando à Feitoria Fortaleza sucede a Fortaleza-Feitoria e a guerra era uma constante, tendo os portugueses marcado definitivamente a sua posição e demonstrado a sua incondicional supremacia na Batalha de Diu em 1509. Daqui a 1515, mais uma etapa, a derradeira a que nos debruçamos neste trabalho, com a consolidação das bases marítimas e constituição das territoriais. Afonso de Albuquerque, 2.º Vice-Rei da Índia, vai tomar pontos estratégicos como Goa em 1510, a importante posição assumida pela tomada de Ormuz, o controle apertado do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho, culminando com a conquista de Malaca em 1511. Chegados ao Pacífico, feita a ligação entre “dois mundos diferentes e dois mares diferentes”, vai-se impulsionar a diplomacia, uma estratégia bem distinta das anteriores, com novos povos, como a China, o Japão e muitas ilhas do Pacífico. Olhava-se, finalmente, o “mundo na sua natural dimensão” (Oliveira, 1999, pp. 204 e 208).

Com fracassos e glórias, avanços e recuos, contrariedades e alegrias, a Expansão Portuguesa nos séculos XV e XVI, que também tocou a América do Sul, deve ser acima de tudo analisada do ponto de vista evolutivo da Humanidade, pois, como disse Russell-Wood (1998, p. 341): “Os portugueses mudaram a maneira como os povos do mundo se viam a si próprios nos séculos XV, XVI […] e, ao fazê-lo, contribuíram, de maneira decisiva, para a formação do mundo moderno”.

Abrimos a segunda abordagem recorrendo, de novo ao último autor citado, A. J. R. Russel-Wood (1998, p. 37): “Parece não ter havido faceta da experiência humana que tenha escapado aos olhos de lince e aos excelentes ouvidos dos portugueses nas suas peregrinações”, pois estas palavras, aludindo também às “peregrinações” nos mares, condensam os propósitos desta parte da dissertação que, como dissemos, irá efectuar, sem os desejáveis aprofundamentos que viriam a propósito mas que este tipo de publicação não contempla, uma interligação entre as distintas etapas do domínio atlântico, devidamente caracterizadas, e as embarcações que, etapa a etapa, foram utilizadas; abordar a relação existente com o progresso da cartografia, ao longo das fases em questão; e analisar a ligação entre essas duas actividades – a construção naval e a cartografia – com as políticas e estratégias dos monarcas portugueses no desenvolvimento da Expansão, focando aqui essa análise não só no Atlântico mas também no Índico.

Exponham-se, mais uma vez, pela importância que detêm, as etapas do domínio do Atlântico, coincidentes cronologicamente com as que apresentamos acima, pela sincronia com os reinados e regências que, segundo Oliveira (1999, pp. 158- -186), compreendem os seguintes períodos: 1415-1439/40 – reinados de D. João I, de D. Duarte e regência de D. Leonor; 1440-1449 – regência do Infante D. Pedro; 1449/50-1482 – reinados de D. Afonso V e de D. João II; 1482-1502/03 – reinados de D. João II e de D. Manuel I, etapa durante a qual se dobra o Cabo das Tormentas, da Boa Esperança para o Príncipe Perfeito que via abrirem-se as portas do Índico em direcção a Oriente, à tão almejada Índia, “no largo mar fazendo novas vias”, como escreveu Camões n’Os Lusíadas (V. 66).

Todas estas etapas estão directamente ligadas, consoante as estratégias régias, ao que alguns autores, como Albuquerque (1989 [1], p. 81), denominam as “duas correntes de expansão” – os aspectos guerreiros e de conquista defendidos pela nobreza, e os aspectos comerciais e de exploração territorial, denominados, então, de advogados por uma burguesia “urbana de mercadores e armadores” que tinha entrado no Quatrocentos português com um “peso relevante na vida económica e social do País” (Albuquerque, 1989 [1], p. 39) – atente-se que o autor refere os armadores, os homens da construção naval, uma das matérias desta exposição, influentes social e comercialmente.

A primeira etapa, tenta conciliar os interesses enunciados – o bélico através do combate ao infiel e o comercial aliado, como se disse, à exploração e busca geográficas – após a conquista de Ceuta, em 1415. É o Infante D. Henrique que surge como protagonista e estabelecedor de pontes entre os dois interesses em causa, seja como actor nas acções bélicas – conquista de Ceuta e tentativa falhada de conquistar Tânger, em 1437 –, seja pelo encorajamento e impulso prestado às acções de colonização de territórios e às actividades comerciais, que muito interessavam à burguesia, sustentada nos “bens mobiliários, no trato e na mercância” (Oliveira, 1999, p. 159). Destaca-se, nesta etapa, a dobragem do Cabo Bojador, por Gil Eanes, em 1434, marco do final de uma sub-etapa de exploração geográfica.

Com a regência do Infante D. Pedro, assistimos à segunda etapa, marcada, essencialmente pelas questões comerciais em detrimento das bélicas – o incremento dos contactos à «boa paz». Estabelecem-se ligações no interior do continente, penetrando pelo Rio S. João, com as grandes rotas caravaneiras, explora-se a região a Sul do Cabo Branco e a Feitoria de Arguim, pela importância geoestratégica, “transformar-se-á no mais importante centro de comércio ultramarino” (Oliveira, 1999, p. 167) até 1482. Após a Batalha de Alfarrobeira, onde o Infante D. Pedro perdeu a vida, D. Afonso V inverte as políticas e com essa alteração assistimos ao início da terceira etapa. De novo os interesses de conquista, logo bélicos e guerreiros, se destacam, com uma inevitável estagnação das viagens de exploração, principalmente após a morte do Infante D. Henrique em 1460, embora se deva ter em conta que “nesse mesmo período nunca as navegações de exploração e o trato com as populações ao longo da costa africana cessaram completamente”, recorrendo-se “por concessão régia e temporária a mercadores e armadores” (Azeredo, 1989, p. 51) – de novo e sempre os armadores. Neste período, D. Afonso V vai guerrear Marrocos e prosseguir com as conquistas. Com D. João II chega ao fim a presente etapa, nesse grande marco que foi, como vimos, a Feitoria e Castelo de S. Jorge da Mina, construída na Aldeia das Duas Partes, em 1482.

A última etapa atlântica vai decorrer daí até 1502/03, sendo a data de 1487/88 de extrema importância. Trata-se do concretizar do sonho de D. João II – a dobragem do Cabo das Tormentas, por Bartolomeu Dias, após as suas anteriores expedições, bem como das de Diogo Cão. Será, mais tarde, D. Manuel I que receberá a boa nova da chegada à Índia por mar, no grande feito de Vasco da Gama, em 1497/98. Esta etapa, com a incursão no Índico, ficará assinalada, para além das acções de «boa paz» de que D. João II era defensor, pelo posterior recurso à guerra, inevitável nos novos percursos, pois “iam interferir com interesses comerciais antigos e instalados na área” (Azeredo, 1989, p. 57).

Cabe aqui agora uma menção à construção naval, atendendo que os estudos dos Descobrimentos têm obrigatoriamente que “conceder papel relevante ao conhecimento de um dos seus meios técnicos privilegiados: o navio” (Domingues, 1989, p. 515). Sabemos que as primeiras explorações da costa ocidental africana se realizaram com barcas e barinéis, usadas na pesca, na navegação fluvial e de cabotagem, e que “combinavam uma área de vela limitada com remos” (Russel-Wood, 1998, p. 46). A barca, de pequeno porte, com cerca de 30 tonéis de arqueação e mastro com pano latino (triangular) é a que terá sido empregue na empresa da Expansão na primeira etapa do Atlântico, pois foi numa barca que Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador. Sobre o barinel, como diz Domingues (1999, p. 220), depois disso “o infante mandou armar um barinel”, dando a capitania do mesmo a Afonso Gonçalves Baldaia que, juntamente com Gil Eanes, na sua barca, navegaram trinta léguas para além do Bojador. Será este o único documento que cita o barinel? Certamente que muito ainda estará por estudar relativamente à História da Construção Naval Portuguesa.

O desenvolvimento da construção naval vai impulsionar o surgimento da caravela que, embora já referenciada em documentação de 1226, é na época sobre a qual nos debruçamos que vai trazer um contributo notável, principalmente a caravela latina, não esquecendo os distintos tipos: “além das caravelas de descobrir, redondas ou de armada, temos as alfamistas, pescarezas, primitivas, latinas com um, dois ou três mastros, de aviso, mexiqueiras, antiga meã e por fim o caravelão”, para “recados […] auxiliar em armadas de maior porte” (Domingues, 1989, pp. 537 e 526).

A caravela latina de dois ou três mastros, com cerca de 40 a 60 tonéis de arqueação, podia ser “armada com pequenas peças de artilharia” (falcões e berços), era uma “boa veleira” e de pequeno calado, possibilitando-lhe a navegação no oceano, de cabotagem e de exploração de enseadas e cursos de rios. Surge na “década de 1440” (Domingues, 1999, p. 220) e é com ela que se entra no Índico, pela dobragem do Cabo da Boa Esperança em 1487/88, pelo que estamos perante o tipo de embarcação usada nas segunda e terceira etapas do domínio do Atlântico.

Mas com a quarta etapa surgem as longas rotas oceânicas e, inevitavelmente, a “perca de eficácia da caravela” é uma realidade: “Bartolomeu Dias navegou com caravelas; Vasco da Gama fá-lo-á com naus” (Domingues, 1999, p. 224) – “o primado das naus, dotadas de maior capacidade para o transporte de homens e mercadorias, além de mais resistentes, características que as aconselhava para viagens tão longas e difíceis” (Carvalho, 1992, p. 42). As naus, houve-as, com grandes calados, que foram dos 120 aos 900 tonéis de arqueação, conseguindo, as maiores, transportar entre 700 e 800 pessoas. Em termos militares, podiam ser equipadas com peças de grande calibre (“bombardas grossas à proa […] inovação, só documentada em Portugal” (Pedrosa, 2002, p. 9)), essenciais para as acções bélicas a travar no Índico – “o recurso à guerra foi necessário – e diga-se drasticamente utilizado” –, situação que não aconteceu no Atlântico. Recorde-se a Batalha de Diu, “uma das mais importantes batalhas navais da História” (Oliveira, 1999, pp. 197 e 199). A evolução continuou e, nos finais do primeiro quartel do século XVI, surge o galeão, mais apto para batalhas navais.

No que respeita à cartografia, por volta de 1445, já em Portugal se executavam “cartas com o desenho da costa africana recém-reconhecida” e sabe-se da “possível contratação de um cartógrafo maiorquino para vir ensinar a sua construção no tempo do infante D. Henrique” (Albuquerque, 1989 [2], p. 93). Desde o início da Expansão que os monarcas necessitavam de um conhecimento profundo das costas e dos territórios, no sentido de uma eficaz evolução em termos de construção naval e até de preparação para possíveis conflitos – o conhecimento do território era de primordial importância.

Também os roteiros “começaram a cobrir uma extensão muito maior de costas” (Abecassis, 1988, p. 7). Voltemos, no entanto, à designada escola portuguesa de cartografia, que no seu início apresentaria exemplares muito semelhantes à carta de 1439 do maiorquino Gabriel Valseca e onde, muito provavelmente, figurariam ilhas imaginárias como a famosa, pelos menos entre as gentes do mar, Antília. Mais tarde, D. Afonso V vai encomendar um mapa-mundo, concluído por Fra Mauro em Veneza e trazido para Portugal em 1459, onde se registassem “as terras orientais que os portugueses desconheciam” (Garcia, 2007, s/ p). A par da construção naval, a preocupação em conhecer os novos mundos que se pretendia alcançar, bem como os conquistados, como fez D. João II, em 1458 quando “um grupo de cientistas foi enviado numa missão de estudo” para “corrigir e completar as cartas náuticas tradicionais” (Abecassis, 1988, p. 8).

A partir da viagem de Vasco da Gama “as terras e ilhas do Índico começaram a ser cartografadas à maneira portuguesa” (Garcia, 2007, s/p), como se pode verificar pelo «mapa de Cantino», de 1502. Servirão, então, as cartas portuguesas de modelo às europeias e extraeuropeias (v.g. mapa do turco Piri Reis, de 1513), não esquecendo que a cartografia portuguesa bebeu muitos dos seus conhecimentos através de informações e de cartógrafos do Índico e do Pacífico, como aconteceu com o «Livro de Francisco Rodrigues», acabado em 1515.

Concluindo, com o impulso dos monarcas, muitas foram as inovações e em distintas áreas, num movimento que foi a “passagem de um mundo a outro, da Europa a toda a Terra; mas mais do que isso, ela é também a época em que os esquemas tradicionais foram ultrapassados, em que se reconhece que é necessário prestar atenção à observação” (Albuquerque, 1987, p. 21).

“Se mais mundo houvera, lá chegara” (Camões, Luís de – Os Lusíadas, VII, 14).