Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim:
seria igualzinho aos outros se não
fôssemos nós a «fazê-lo» diferente.
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote, 1995
A apropriação humana do espaço, que aqui não queremos tratar numa perspectiva de interacção homem-meio propriamente dita, pese embora se pretenda estabelecer alguns paralelismos, tem uma enorme expressão nas nossas romarias, tornando os minhotos verdadeiros intervenientes na festa, fazendo inteiramente parte dela, vivendo-a, numa atitude participativa e nunca de mero espectador, como acontece quando assistem à passagem da procissão, de um cortejo ou de outra qualquer manifestação que, para estes lados, popularmente, a maior parte das vezes designam por “parada”.
Ao longo dos tempos, o Homem sempre procurou apropriar-se do espaço, marcando-o e legando-o às gerações futuras, estabelecendo fronteiras e adaptando-se ao meio, mesmo em condições extremamente adversas – torna se impressionante o conhecimento de estruturas populacionais a viverem nos locais mais recônditos e inacessíveis, em contextos que para nós, fruto de uma cultura ocidental extremamente arreigada, seriam impensáveis como sítios para habitar.
Também a construção de jardins, de que é notável exemplo o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima, o qual demonstra excelentemente muitos dos esforços que todos os dias são desenvolvidos na apropriação humana do espaço, possibilita uma abordagem à questão, sem que se queira realizar aqui uma problematização na verdadeira acepção da palavra.
Contudo, após este pequeno intróito e o paralelismo a que nos referimos no início, é de festa que queremos falar; de festa transformada em autêntica romaria e, sobretudo, em arraial.
Quando nos surgiu a ideia de versarmos essa forma peculiar do minhoto se entregar e integrar na romaria, tivemos que recorrer a algumas leituras que muito enriqueceram o entendimento que tínhamos e que nos obrigaram a outras reflexões, concluindo que é uma vasta e riquíssima temática, sobre a qual muitos autores se debruçaram e dos quais nos valeremos para sustentar considerações, sem pretender transformar este ligeiro texto num trabalho profundo de etnografia, pois não é o local próprio para o efeito e não dispomos dos conhecimentos necessários para tal, bem como, da investigação séria e cuidada que tarefa tão complexa obriga. Para suportar o que acabámos de afirmar, atente-se às palavras de Tomaz Ribas (1982, p. 13):
“«Popular», «Tradicional», Folclórico», «Étnico» – eis termos que hoje, quando aplicados a determinadas expressões, particularmente às artísticas e espirituais, despistam quem com elas depara, confundem, pouco significam e quase nada esclarecem.»”
Sabe-se que o Homem, desde sempre, se manifestou através da dança, fazendo-o em locais de culto e de manutenção da memória, da identidade e da tradição, muitas vezes junto de monumentos funerários, os que primeiro se impuseram na paisagem humanizada, como as antas ou mamoas, sinalizando o espaço e assumindo a marca identitária da tribo que iniciava práticas agrícolas e se tornava sedentária, vindo a originar aglomerados populacionais como os nossos característicos castros e castelos.
Mais tarde, séculos depois, a Igreja impõe-se e obriga a regras, para além de “sacralizar” muitos desses locais, com a implantação de ermidas, capelas, cruzes e vias-sacras, trazendo como que uma disciplina à dança, condicionando-a e retirando-lhe o que poderia ser considerado excessivo, como é o caso das célebres “folias”, herdadas certamente de tempos medievos e banidas das Procissões do Corpo de Deus, durante a Idade Moderna, em todo o território nacional.
Mas as danças populares são continuamente influenciadas e o que temos hoje é uma amálgama de contributos que podemos designar por extremamente bem conjugados ou, melhor, bem integrados.
“Originárias de arcaicas civilizações e antigas culturas pagãs e primitivas, moldadas por factores culturais hispano-godos e por um mundo espiritual, cultural e social construído pela Igreja, miscigenadas de elementos judaicos e mouriscos e, mais tarde, de elementos exóticos ultramarinos, influenciadas por elementos palacianos e eruditos, aculturadas (por via burguesa) por danças estrangeiras — nem por força deste complexo etno‑cultural as danças populares portuguesas de hoje deixam de possuir a sua fisionomia e o seu carácter próprios, deixam de ser originais e bem expressivas do povo que as reteve, transformou e ainda executa.”
(Ribas, 1982, p. 55).
Interessa, porém, voltar à questão da apropriação humana do espaço e aqui tentarmos perceber a razão pela qual os minhotos nunca se separaram do local sagrado para dançar, aliando santificado e profano de uma maneira muito subtil, independentemente da Igreja se impor várias vezes através de restrições ao que considerou abusos e desregras.
As danças, as músicas, os cantares ao desafio continuam a pontuar todos os adros das igrejas em noites de romaria, sendo o dia destinado, quase sempre, para as cerimónias religiosas, transformando as romarias em arraial, nesses sempre célebres arraiais minhotos que têm o seu expoente máximo em manifestações como a Senhora da Peneda, o S. João de Arga ou as inigualáveis Feiras Novas, em Ponte de Lima.
Será uma necessidade de autêntica ocupação humana do espaço? Terão os minhotos que preservar o seu espaço de ritual herdado de tempos de antanho, mais tarde “sacralizado”, sempre dedicado às manifestações de regozijo, numa mescla engenhosa, quase como que um subterfúgio para a manutenção de ritos muito antigos nos seus locais originais, com uma autorização não expressa da Igreja que soube sempre virar a cara, não condenando nem aceitando, independentemente de algumas tentativas disciplinadoras, no decurso do século XX, devidamente apoiada por políticas do Estado Novo? Esta última fase a que nos referimos é denominada por alguns autores de «recristianização das romarias».
“Trata-se primeiro de «tentar obter», depois de «ordenar» ou de «proibir», de suprimir os arraiais perto da igreja […], depois o arraial das vésperas de festas, depois qualquer arraial em certas festas, enfim o arraial seja ele qual for. Ou então, condenar totalmente certas danças enquanto se toleram outras provisoriamente; ou ainda suprimir alguns costumes antigos: dormir na igreja […]”
(Sanchis, 1992, p. 211).
Coube, pois, ao povo manter aquilo que era seu, conservando o arraial nocturno, fora de horas consideradas decentes e associando-lhe pormenores que caracterizam esse vivenciar da festa, em que a cor assume toda a preponderância, desde os arcos de festa às iluminações decorativas, dos trajes femininos aos cestos de oferendas, do fogo-de-artifício aos balões de festa, é a cor, sempre a cor a figurar na noite de arraial.
Quando nos referimos à cor associada ao arraial, imediatamente nos surge a ideia dos grandes espectáculos de fogo-de-artifício que os pirotécnicos da região nos oferecem, nessa arte remota que se sabe ter partilhado a sua eloquência com a guerra, pois eram os mesmos saberes que se empregavam nas batalhas e nas noites de festa, neste último caso, como animação e regozijo de quem presenciava os espectáculos.
Nas vitórias, erguiam-se arcos triunfais, muitos deles sumptuosos e que deixaram marcas até aos nosso dias, os quais poderão ser lidos como que progenitores dessa arte bem patente nos arcos de festa, hoje com carácter decorativo, religioso e festivo e, outrora, para além da celebração do triunfo, os arcos triunfais também serviam para celebrações de grande pompa e, além de outras, para as entradas régias.
Está bem documentada a construção de arcos triunfais por artistas de renome, muitos deles de difícil percepção e entendimento por parte das camadas menos literatas, tendo em conta a quantidade de representações que componham cada uma desta peças escultóricas efémeras que, para gáudio de todos quantos as admiravam, tinham um significado de autêntica festa e originavam verdadeiras romarias de muitas centenas de pessoas para contemplar o trabalho empregue na competente criação.
Para além dos artesãos que criam os arcos de festa, terão também herdado muito do seu saber aqueles que designamos por “armadores”, ou seja, os decoradores de andores de procissão e de altares de capelas e igrejas, tendo em consideração a similitude decorativa, os meios e os motivos ornamentais empregues em cada uma das peças ou espaços criados ou embelezados. No entanto, é sem sombra de dúvida nos trajes femininos minhotos que a cor e a festa melhor estão representadas.
Uma mulher minhota envergando devidamente um traje folclórico é um espectáculo deslumbrante se tivermos coragem para apreciar os milhares de pormenores que o conjunto pode ostentar, desde os lenços à algibeira, da camisa ao colete, das saias ao avental tecido.
E que dizer dos bordados? Do ouro? Das socas? Das meias? Dos forros das saias? Do avental bordado ou dos lenços de namorados ou de amor que são um dos maiores cartões-de-visita do Alto Minho em qualquer parte do mundo?
Podíamos ir ainda um pouco mais longe, por de festa se tratar e falar de alimentação, como é o caso do pão de trigo usado nas romarias, nomeadamente nas famosas “roscas das mordomas” ou nos “bichos de leilão”.
“Os bichos, nome genérico destas figuras de pão, são figurações antropomórficas e zoomórficas, como muitas outras conhecidas no nosso país, mas com a particularidade de os olhos serem assinalados com feijão frade e a língua com uma fita de pano ou fio de lã vermelhos. […] O leilão e venda tradicional destes pães nas festas de romaria tem-se tornado progressivamente mais raro.”
(AA. VV., 1983, pp 107 e 108).