Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra
e a planta.
Não sei mais nada.
Alberto Caeiro, Dizes-me: tu és mais alguma coisa, in Poemas Inconjuntos
Realizar um ligeiro texto de abordagem à necessidade de fixação de imagens, uma vez que as mesmas, pela velocidade com que se apresentam aos nossos sentidos, adquirem um carácter de efemeridade e a maior parte das vezes, pouco tempo depois, até numa questão de minutos ou segundos, já não passam de meras recordações, obriga-nos a uma ligeira reflexão sobre a necessidade que o Homem ao longo dos tempos teve, e tem, de utilizar as representações como forma de explicitação do que o rodeia, da natureza, do inexplicável e, de entre outros, do imaginário.
Atente-se contudo num certo paradoxo que um projecto da índole do Festival Internacional de Jardins pode conter.
Qualquer autor/criador, ao exibir um projecto, pretende apresentar uma representação de uma certa mundividência, de uma mensagem, das influências sociais e culturais de que é alvo, no sentido de transmitir conceitos e visões diferenciadas sobre as interpretações direccionadas para determinada temática, neste caso o Jardim dos Sentidos, obrigando à sempre pertinente interacção criador/espectador através da Arte, pois é de Arte dos Jardins que aqui se trata.
Se a criação e construção de um jardim efémero é na realidade um acto de fixação, logo de representação, por sua vez, o carácter natural, de natureza propriamente dita, de cada projecto leva-nos ao princípio, ou seja ao que pretendemos sempre fixar e não será por acaso a existência deste livro, bem como, do respectivo sítio da internet, onde as representações estão devidamente captadas, através de pormenores dos projectos, das fotografias e das palavras, signos indissociáveis das representações, pela descrição e pela ficção, principalmente depois da descoberta da imprensa.
Estamos perante a dificuldade de criar representações de espaços naturais, levando, por seu turno, a que esses espaços se vão transformando, fruto das interacções com o meio natural envolvente, implicando um desenvolvimento nem sempre totalmente controlável, com imponderáveis e que tornam o projecto – a representação propriamente dita – num contínuo modelo para muitas outras representações, num círculo imparável de modelos/representações/novos modelos/novas representações.
Fixar o não fixável? Representar o quê e como, na imutabilidade, será exequível pela impraticabilidade de controlo total da natureza?
Um círculo imparável do ponto de partida para a representação do mesmo, levando a novos pontos de partida que obrigam a novas representações e interpretações variadas – não será por acaso que a necessidade de representação se encontra espelhada nas centenas ou milhares de fotografias que existem sobre o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima. Aprisionar o natural em representações que substituem a memória e a efemeridade de um momento que, por muito belo e prazenteiro que seja, ou não, pois o menos bom, o horrível, a morte… também são alvo de representações, acaba por ser fugidio e ultrapassa as nossas capacidades de retenção de informação.
Mas de que falamos quando aludimos às representações?
Recorremos a dois autores de referência que se debruçaram sobre estas questões e que podem contribuir para uma clarificação de conceitos e uma eficaz explanação – Louis Marin e Claude-Gilbert Dubois.
Louis Marin, numa primeira fase, fundado em Pascal explana aquilo que, traduzido à letra, designa por “modelo da atracção e atracção do modelo” (2001, p. 16) apresentando essa praticamente obsessão humana pela fixação em representações do meio envolvente, inclinando-se sempre pela apreciação do modelo em desprimor do original, devida à incompreensão deste e, sobretudo, quando concerne à natureza, pela sua constante mutabilidade, chegando-se, em tempos, a considerar o carácter de mudança como pouco verídico ou mesmo mentira e daí a necessidade de registo nas representações, numa tentativa de alcançar a verdade, como nos afirma, por sua vez Claude‑Gilbert Dubois: “l’immobilité est une garantie de vérité” (2001, p. 62) – “a imobilidade é uma garantia de veracidade” (tradução, livre, nossa).
Independente da abordagem às teorias de Pierre Bourdieu e de Hubert Damish para relacionar as representações com a teoria da história, efectuada por Marin, parece-nos existir concordância entre os doisautores, Marin e Dubois, ao concluírem que as representações tenderam por ganhar como que um aperfeiçoamento aquando da aplicação às mesmas de métodos matemáticos, nomeadamente a geometria, mais tarde a perspectiva, à pintura e à escultura. Não será por acaso que Marin sublinha a forma propositada como Bourdieu ilustra a cidade real recorrendo a exemplos de mapas geográficos ou perspectivas de mapas de cidades – as representações do real, aqui, são um exemplo notório da necessidade de aprisionar todo um espaço e um tempo sob fórmulas e cálculos matemáticos que o Renascimento desenvolverá de forma notável, como Dubois, por sua vez, descreve.
Espaço e tempo definidos numa representação. Representação que vai atingir um apogeu, segundo Dubois, aquando da invenção da imprensa por Gutenberg, substituindo modelos e regras definidas pela designada mimesis, até à época representação da acção e conceito de arte pela imitação que significava, por signos – as letras que formam palavras que, por sua vez, originam textos que representam aquilo que até então apenas era apresentado na pintura ou na escultura, as quais Marin designa, grosso modo, olhar substituindo outro olhar.
Os olhares sobre o espaço e o tempo são como que correntes que aprisionam em registos imagens reais que se querem perceptíveis, inteligíveis e, principalmente, observáveis pelas multidões que acreditam mais nas representações do que no real envolvente, numa consequência da atracção exercida pelos objectos, a qual implicará a inevitável representação – a imagem, os signos, os ícones e, até, os mitos.
“Abordámos a génese do simbolismo começando
pelas palavras que se dirigem
ao sentido da audição e que os povos nómadas
ou de pastores, cuja actividade era
exercida no mundo animal, móvel como
eles próprios, utilizaram preferencialmente.
É por esta razão que as suas línguas são
tão ricas em expressões do movimento.
Quanto aos povos sedentários, agricultores e
fundadores de cidades, exploraram naturalmente
os reinos vegetal e mineral utilizando
um simbolismo de signos fixos que se dirigia
à visão, como a escrita, a arquitectura e as
artes plásticas, sendo a própria escrita um
modo de fixar a linguagem.
Todavia a complementaridade dos estados
da existência corrigiu o que estas qualidades
tinham de exclusivo. Os nómadas errantes
no espaço praticaram sobretudo a
poesia e a música baseadas no ritmo do
tempo. E os sedentários, fixos ao longo dos
tempos, dedicaram-se sobretudo às artes
plásticas que dependem do número e da
geometria tributários do espaço.” (Benoist,
1999, p. 43)
No todo que compõe o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima 2013, neste Jardim dos Sentidos, as noções geométricas e matemáticas, o espaço e o tempo, mesmo que não perceptíveis numa análise mais despreocupada, são obrigatórias para que a representação capture conceitos, apreenda os sentidos de maneira a transmitir as mensagens que cada um dos projectos encerra e que, em conjunto, se complementam, transformando o evento num percurso de representações notável.
Transforma-se, por isso, a representação em linguagem e comunicação, influenciada pela e influenciadora da sociedade, como tão bem nos demonstram as explicações mais modernas em termos de Sociologia da Arte. Através delas, a percepção de um tempo histórico, das sociedades que produzem as representações, nomeadamente o seu ser e o seu estar, é de mais fácil entendimento.
Antoni Tàpies (Apud Carla Alexandra Gonçalves, 2010, p. 17) afirmou que “se conseguimos formar um novo conceito de realidade não é por capricho pessoal, mas sim por factos concretos que acontecem à nossa volta” e esta declaração denota o quão importante é a representação em termos de imagem da sociedade que a produziu, seja no tempo ou no espaço ou na conjugação espaço-tempo, tendo em conta a sempre existente e inevitável interacção entre a sociedade e os criadores, numa relação constante sociedade criador-receptor, qualquer que seja a ordem por que se influenciam e não obrigatoriamente a que acabamos de elencar.
A relação entre as representações (na pintura, na escultura, na gravura, na fotografia, no cinema, na Arte dos Jardins…) e a História possibilita uma leitura, por parte desta última, das sociedades e dos indivíduos que as produziram, por serem elas, as representações, testemunhos das interacções referidas, em que criadores e sociedades agem e reagem constantemente.
Existe uma eterna necessidade das representações para ler e transmitir o todo social e natural circundante, o qual não pode nunca estar desligado das noções de memória e de identidade, absorvidas pelos Homem através dos sentidos, pelas vivências e partilhas.
“…nada pode ser por nós compreendido
que não evoque uma das nossas recordações.
Nada podemos reconhecer sem antes
conseguirmos aproximá-lo de um precedente
conservado na nossa memória.”
(Benoist, 1999, p. 15)
Ainda em relação à memória e à identidade, a mobilidade social, no sentido ascendente, implica sempre a tentativa de apropriação de representações por parte das classes mais baixas procurando a imitação das formas de vida de classes colocadas em patamares considerados superiores. Na sua obra La Dynamique de l’Occident, Norbert Elias apresenta uma considerável dissertação sobre a mobilidade social desde a Idade Média e a necessidade que os estratos sociais mais baixos, nomeadamente a burguesia na Idade Moderna, têm de assimilar as condutas, os rituais, os comportamentos, os modos de estar e de relacionamento dos indivíduos dos estratos superiores, quer de uma cavalaria guerreira na Idade Média, de uma aristocracia de corte para o período absolutista e, posteriormente, em alguns países da Europa, durante o despotismo iluminado, quer de uma burguesia vencedora das revoluções liberais e/ou saída da Revolução Industrial, quer mesmo dos membros associados ou representativos dos denominados Estados contemporâneos, todos eles definidores de regras a seguir pelos membros das camadas imediatamente inferiores que procuram ascender a um estrato social superior.
Executa um exercício de análise muito interessante relacionado, como se disse, com a necessidade de mobilidade social, no sentido ascendente, como é óbvio, também ela baseada em concepções de tradição e de identidade. Tradição e identidade associadas à noção de “civilização” e de “cultura” de que os estratos sociais superiores são considerados detentores nas sociedades ocidentais, exemplos de estilos de vida e de estar a seguir por todos aqueles que, ávidos pela ascensão, tendem a imitar, não o conseguindo no imediato, apenas copiando e adoptando hábitos, formas vistas como de “nova-cultura” ou, até, de “nova civilização” que rodeiam as dos estratos superiores mas não as conseguem atingir antes da, pelo menos, passagem de uma geração.
Todas estas representações podem ser registadas nos mais distintos suportes, como se disse, destacando-se aqui as imagens sociais – modos de estar, condutas, saudações, modas, comportamentos… – e a linguagem, pela literatura, ambas expressões artísticas e, por isso, de novo o recurso à Sociologia da Arte, que muito bem, no nosso entender, nos dá a percepção de tradição e identidade nas representações e na História:
“…as obras de arte deixam-se experimentar
tanto mais verdadeiramente quanto
mais a sua substância histórica for a do autor
da experiência.”
(Adorno, 1993, p. 207)