Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda
que pesada.
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
Álvaro de Campos, Mestre, meu mestre querido!, in Poesias
Ritual, necessidade fisiológica, prática social, festa, espaço de convívio, o acto de comer, tão antigo quanto o próprio Homem, continua a ser um estímulo para um sem conjunto de investigadores, nas mais distintas ciências e áreas do saber, assistindo-se ao surgimento de um notável número de estudos aturados que nos trazem luz sobre hábitos e costumes alimentares ao longo dos tempos.
Muito a propósito da temática da presente edição do Festival Internacional de Jardins – Jardins p’ra Comer –, sem qualquer pretensão de estudo aprofundado, tendo mesmo por alicerce algumas das imagens que o próprio Festival nos proporciona, as questões podem colocar-se em catadupa: Quais os primeiros alimentos? Como se desenvolveram os temperos e os molhos? O formato dos primeiros pratos? Seriam de cerâmica, de madeira ou usando o pão a servir de prato? E os talheres? Quando surgiram e por que ordem?
Teria sido mesmo a colher a primeira peça a ser utilizada? Era hábito levar-se a sua própria faca para as refeições?
Questões e mais questões que poderiam originar, pelos exemplos apresentados, distintas abordagens e formas de encarar um esboço conducente à apresentação de um projecto com toda a viabilidade de integrar o leque que este ano constitui o Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima.
Será preferível, contudo, uma ligeira exposição alusiva ao desenvolvimento da alimentação no tempo e à apresentação de uma ou outra curiosidade que alguns autores têm trazido à colação.
Não é difícil imaginar nesta região uma época castreja, de floresta e matagais densos, povoada nos cimos dos montes e de muitas colinas, espaços testemunho e lição de História, qual documento involuntário e indirecto que a Arqueologia pode desvendar, onde a caça e o pastoreio são a base da alimentação.
Com os romanos, ocupante que traz consigo uma civilização bem arreigada, aprendem a cultivar cereais, a fazer vinho, a dedicarem-se a uma agricultura mais produtiva e eficaz, a par com a fixação junto ao mar, onde a pesca e a técnica de salgar o peixe são desenvolvidas.
“Depois de terem vivido no cimo dos cerros e colinas, adaptaram-se ao habitat sedentário, aos quintais, aos animais domésticos; aprenderam a cavar e a lavrar a terra, a adubar, a semear, a arrancar ervas e a colher o fruto do trabalho; habituaram-se a apreciar o vinho ácido, picante, de baixa gradação e difícil de conservar. Mal podiam cultivar o trigo, mas semearam o centeio nos montes e encostas e descobriram o milho-painço para cultivar nos vales.” (Mattoso; Daveau; Belo, 2010, p. 110)
De uma garfada, pois de comida se trata neste texto, saltemos as invasões que se seguiram, das normandas às muçulmanas, até à Idade Média, na sua fase intermédia. As oliveiras aparecem, com timidez, a destacar-se na paisagem, primeiro em volta das igrejas – para o azeite do culto divino –, mais tarde, encaradas como factor de contributo alimentar primordial, dando origem, numa sequência lógica do que há pouco se referiu, à grande trilogia alimentícia que marca todo o Mediterrâneo, estendendo-se para norte, até aqui, ao Noroeste Peninsular: pão – vinho – azeite.
Paremos, por um instante, na Idade Média. A carne é associada ao poder e, por isso, um dos alimentos que as classes sociais mais altas privilegiam. Atente-se às palavras de Iria Gonçalves (2000, p. 30): “As ligações entre o consumo de carne e o reconhecimento da força e do poder eram de tal forma profundas e revestiam tão grande significado, que, sintomaticamente, por vezes, a privação penitencial daquele alimento vinha acompanhada pela obrigatoriedade da renúncia ao exercício das armas, durante o mesmo período de tempo.”
O alimento de prestígio, de vigor e de afirmação social, em contraponto com o peixe e os legumes, os quais vão ser usados pela Igreja como símbolo de pureza, de inocência, uma forma de combater a gula e alimentar corpo e alma, pela privação da carne, imposta nos muitos dias de jejum que o calendário litúrgico decretava na época – cerca de 68 dias por ano de abstinência obrigatória.
Caça e criação são consumidas e a documentação dá-nos conta de um número variado de carnes: gamo, zebro, cervo, corço, lebre, urso (a perna suculenta era considerada uma iguaria)…, animais domésticos, com excepção do peru que só integrará os hábitos alimentares após os descobrimentos e, para além de outras, carnes de aves: perdiz, abetarda, grou, pato bravo, cerceta, maçarico, fuselo, sisão, galeirão, calhandra… Conhecem os enchidos e a carne é assada no espeto, cozida, picada ou estufada.
Num País com as características de Portugal, o peixe (o alimento magro) e o marisco fazem parte do quotidiano de uma percentagem apreciável da população, para além de permitir o cumprimento das obrigações religiosas a que se fez referência. Pescadas, sardinhas, ruivos, robalos, gorazes, pargos, cações, besugos…, no que respeita a peixes de mar, tainhas, trutas, bogas, salmões, sáveis…, em relação aos pescados nas águas doces. Pela sua fácil deterioração, desenvolvem-se técnicas de salga, de fumagem e de secagem ao sol. O peixe fresco é raro e bastante dispendioso.
Comem-se alguns legumes e hortaliças e as sopas são apreciadas, quando, como ainda há bem pouco tempo e, até, nos dias de hoje são “adubadas”, como diziam as nossas avós, com um bom naco de toucinho.
A fruta também é estimada pelas camadas privilegiadas, muitas vezes acompanhada de vinho, como, na conjugação, se de um refresco ou refeição ligeira tomada à noite se tratasse.
“Fernão Lopes, ao narrar uma das famosas danças nocturnas de D. Pedro, refere que «andou el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao paço em dansa, e pediu vinho e fruta».” (Marques, 1987, p. 14)
As especiarias são preciosidades caras, nomeadamente a pimenta, e os condimentos feitos à base de gorduras e temperos: toucinho, cebola e alho, para além do azeite, mais fácil de conseguir pela generalização, como se disse, da oliveira e de muito fácil conservação, bem como da manteiga, esta última na preparação, sobretudo, das carnes. Usam-se molhos fortes e ervas aromáticas para dar gosto à comida, recorre-se a acidulantes, como o agraço e o vinagre (proveniente do vinho que rapidamente se deteriorava) e o sal, de que fomos grandes exportadores, não faltava certamente.
O açúcar é ainda uma miragem, pela raridade e pelos altos preços praticados, pelo que o mel é a solução para utilizar como adoçante, numa época em que os bolos não fazem parte dos hábitos alimentares, salvo algumas excepções como os biscoitos de flor de laranja, pastéis de leite, fartéis e pão-de-ló, para além dos confeccionados com ovos, como canudos e ovos de laços.
Bebe-se vinho, muito vinho, de fraca qualidade e, quase sempre, misturado com água. Reconhecem-lhe capacidades medicinais e torna as pessoas “mais alegres e bem-dispostas”. Os de melhor qualidade podem alcançar como máximo de longevidade os dois ou três anos; os restantes, não raras vezes, são consumidos já em fase de deterioração e, por isso, com mistura de água. Outras bebidas são a água, o hidromel e o leite, este último para as crianças cujas mães não conseguiam amamentar. Veja-se, como curiosidade, ainda a propósito do vinho:
“Que não se bebesse no entanto, mais de duas ou três vezes ao jantar e outro tanto à ceia, recomendava o monarca [D. Duarte]. E que fossem duas partes sempre de água. Depois da ceia, bebesse-se muito pouco, ou mesmo nada, continua o Leal Conselheiro. […]
Nos conventos, o uso do vinho não suscitava as críticas que só mais tarde se levantariam. A ração diária de vinho, dada às religiosas do mosteiro de Vila do Conde pelo testamento de D. Afonso Sanches, seu fundador, ascendia a pelo menos litro e meio por cabeça.” (Marques, 1987, pp. 16-17)
Contudo, mais de 90% da população alimenta-se à base de pão, denotando-se carências vitamínicas que levam a muito débeis resistências às infecções e à criação de condições propícias para a propagação de epidemias, a par de doenças renais e vesiculares, bem como cegueira e escorbuto, de entre muitas outras.
Sempre o pão, os cereais, a marcar o ritmo do desenvolvimento europeu praticamente até ao fim da Idade Moderna, a obrigar que se travem lutas intestinas, muitas das quais se desenrolam durante décadas, devastando, pela guerra que arrasa tudo por onde passa e pela necessidade de alimentos daqueles que, por sua vez, alimentam a guerra, uma Europa carenciada, por vezes incapaz de alimentar o número cada vez mais crescente de habitantes e socialmente marcada por assimetrias díspares entre os proprietários das terras e aqueles que as trabalham – heranças de um domínio feudal e senhorial impeditivo de aquisição e apropriação da terra por parte dos agricultores.
Apenas o trigo constitui problema, e que problema! E, para além do trigo, o pão e o seu necessário consumo. De que farinha será composto? Qual a sua cor? […] O trigo e o pão constituem os eternos problemas do Mediterrâneo, as personagens fundamentais da sua história, as preocupações constantes das grandes potências mundiais. (Braudel, 1987, p. 29)
Registe-se, porém, que até no pão existiam diferenças, uma vez que o pão alvo, macio e fino, proveniente de farinhas várias vezes peneiradas, destinava-se a um estrato social superior, em que se incluía a casa real, contentando- se o povo, no seu forno caseiro, junto à lareira, a cozer um pão escuro e áspero, onde os farelos eram visíveis na composição da massa. O próprio pão chegou a servir de prato, antes do aparecimento do talhador de madeira, tendo em conta o tamanho em que eram produzidos – “Mesmo os mais pequenos que conhecemos eram, comparados com os actuais, bastante grandes. Entre os quinhentos gramas e o quilograma, vários se cozinhavam; na ordem dos dois quilogramas ou mais, eram vulgares; daí para cima, vários outros. Tive notícia, inclusive, de pães habitualmente fabricados no Entre Douro e Minho, com pesos superiores a quinze quilogramas.” (Gonçalves, 2000, p. 34)
Saltemos um pouco no tempo, ao início da Idade Moderna, renascentista, em que os descobrimentos vão trazer uma mudança radical nos hábitos alimentares, principalmente com a baixa de preços das especiarias e do açúcar, produto alimentar precioso até ao século XVI, tal como do chã do Extremo Oriente, do café do Próximo Oriente e do chocolate da América, bebidas novas tão do agrado de uma Europa ávida de experiências em todos os campos.
Assiste-se à introdução na alimentação da batata, do tomate e do milho maís, esse milho grosso vindo das Américas, que originou, particularmente na região do Entre-Douro-e-Minho, o que Orlando Ribeiro denominou por “revolução do milho”:
“Revolução do milho, pode dizer-se com propriedade. Depois da conquista romana, nenhuma alteração mais profunda se introduziu na monótona vida dos nossos campos: nem os árabes, com plantas novas e culturas de regadio, fizeram nada de comparável. Grandes arroteias, supressão dos pousios; aumento da área regada pela construção de socalcos; agricultura intensiva, variada, minuciosa; declínio do pastoreio, por falta de espaços abertos à deambulação dos rebanhos; separação definitiva do campo e do bosque; maior iniciativa no trabalho familiar, decadência irremissível do espírito de comunidade, individualismo que se traduz no parcelamento da terra, na multiplicação de sebes, muros e divisórias, e na disseminação das habitações, tudo o milho favoreceu, permitiu ou provocou.” (Ribeiro, 1993, p. 143)
O milho irá possibilitar aos agricultores maiores receitas em termos de produção, amealhar alguns cobres, aceder a alguns recursos que lhes vão proporcionar saborear o bacalhau que os pescadores de Viana e da Póvoa trazem da Terra Nova e a que anos mais tarde verão o acesso negado devido à carestia dos preços.
Abra-se um pequeno parêntesis para registar aqui um trecho de Jean Delumeau (2004, p. 243) que pode contribuir para uma reflexão mais aprofundada entre as transferências da Europa para o Novo Mundo e vice-versa, uma vez que existem ainda muitas concepções adquiridas que, actualmente, carecem de sustentação científica.
“Não é certo que o feijão branco tenha vindo da América. Também existem dúvidas sobre o milho que, porém, parece ser realmente importação americana e que se difundiu na segunda metade do século XVI em Espanha, Itália e no Sudoeste de França. Em contrapartida, a batata e o tomate – de resto, não é certo que este último seja originário do outro lado do Atlântico – apenas se impuseram na Europa após o Renascimento. No total, as transferências botânicas no sentido América-Europa foram menos importantes do que as que se operavam no sentido inverso, uma vez que os Europeus introduziram no Novo Mundo o trigo, a vinha, o limoeiro, a laranjeira, a amoreira, a oliveira, a cana-de-açúcar, o cacau, o índigo e, mais tarde, o café. A mesma observação é válida para a criação avícola: a galinha-do-mato foi introduzida em França no século XVI por mercadores vindos, não da América, mas da Guiné; os perus multiplicaram-se no Ocidente na época do Renascimento – mas não temos a certeza se terão vindo do Oriente ou do Novo Mundo. Em contrapartida, os colonizadores levaram para a América os animais domésticos da Europa: cavalos, carneiros, bois, porcos, burros, mulas, etc.”
A Idade Moderna assiste ao triunfo do açúcar, de que Portugal é um dos maiores produtores graças aos engenhos do Brasil; os livros de cozinha multiplicam-se; a gastronomia desenvolve-se a passos largos – o gosto pelos legumes, a transformação das técnicas e dos cozinhados, novos condimentos, muitas vezes demasiado doces e/ou abusando das especiarias, uma cada vez maior demarcação das cozinhas nacionais e regionais.
Os restaurantes irão surgir entre nós a partir do século XIX, em plena Época Contemporânea, depois de, no século anterior, se assistir em França à proliferação das cozinhas da rua e do nascimento dos restaurantes propriamente ditos.
A Revolução Industrial e o aumento demográfico irão modificar sobremaneira a economia alimentar a partir de Novecentos. Numa primeira fase, sempre relacionado com o pão e o vinho, desencadeia-se o desenvolvimento de moinhos e fornos, bem como de vinhas e adegas capazes de responder a uma procura massificada de alimentos. As transformações do consumo alimentar sucedem-se a um ritmo alucinante – farináceos, batata e legumes secos, frutos e legumes frescos, alimentos com açúcar, leite e produtos lácteos, ovos, gorduras, bebidas, acesso mais generalizado à carne e ao peixe (do luxo ao consumo de massas), introdução das oleaginosas tropicais e dos produtos frescos ultramarinos na Europa Ocidental… – o que manifestamente se traduzirá num maior equilíbrio nutritivo.
Toda esta indústria alimentar obrigará a tecnologias de conservação inovadoras, numa época em que se podem consumir todos os frutos e todos os legumes em todas as estações – indústria de conservas, técnicas de conservação do leite e redes de frio, entre outras.
Falar da história da alimentação no século XX seria, neste sucinto texto, uma sobremesa mais completa que a refeição em si mesma. Os avanços e preocupações são constantes. Discute-se a saúde e alimentação das mulheres, das crianças, dos idosos. A nutrição e o equilíbrio dietético começam a estar na ordem do dia. A gastronomia é associada ao turismo numa perspectiva de valorização das cozinhas locais e regionais, património imaterial e potencial construtor de memórias colectivas constituídas por laços espaciais que assumem o território na sua diversidade.
Depois de, no início do século, se terem realizado reformas alimentares e o que se designou por “vitaminomania” da primeira metade do século, uma autêntica revolução aconteceu praticamente a nível planetário. Discutem-se pílulas alimentares, o fast-food afirma-se a uma velocidade alucinante, a modernidade invade os domicílios através dos microondas e dos ultracongelados.
Observa-se nos dias que correm uma acção contrária a essa globalização alimentar: a afirmação das cozinhas locais e regionais que permite perspectivar a manutenção de uma herança com alicerces históricos ímpares e que cumpre a cada sociedade valorizar a defender.
Em jeito de digestivo, nesta refeição de palavras que já vai longa, valemo-nos das reflexões de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (2001, p. 434):
“Será que esta diversidade vai resistir? Pensamos que sim, precisamente porque a tendência para uma maior homogeneidade dos comportamentos gera, por reacção, uma forte ligação à própria identidade. Os acontecimentos recentes da política mundial demonstraram-no até à evidência: nos locais em que as identidades são submetidas a um projecto de normalização e de universalização, insurgem-se com um vigor renovado e até com agressividade. Nos planos da alimentação e da gastronomia – elementos essenciais para a definição da identidade histórica […] – verifica-se o mesmo fenómeno: apesar de todos os tipos de ambiguidades e de mal entendidos, a «redescoberta» da cozinha da aldeia e das tradições gastronómicas locais acompanhou a negação dos seus direitos pela indústria alimentar. Actualmente, as cozinhas regionais fazem parte do património comum, facto de que estamos sem dúvida mais conscientes do que no passado.”